Representantes Cearenses na Antologia Proposta por Fernando Pessoa
Grande Cisma Literário na Terra do Sol
Por Astolfo Lima
O
ceará, através de seus filhos mais ilustres, criativos e determinados,
já protagonizou lances memoráveis da nossa história, a exemplo de ter
sido o primeiro Estado a proclamar a abolição dos escravos, em que se
destaca o Dragão do Mar; ou por ter servido de berço a Delmiro Gouveia,
um dos pioneiros na industrialização do país, construtor da primeira
hidrelétrica do Brasil; a José de Alencar, idealizador de uma fisionomia
própria para o romance nacional, assim como tantas outras figuras
notáveis. Por outro lado, e lastimavelmente, tornou-se o Estado
responsável pelo grande cisma na literatura brasileira, fazendo
despontar, autônoma e desvinculada de qualquer influência externa,
sobretudo do próprio espólio literário tupiniquim, uma literatura
exclusivamente cearense. Isso, claro, graças à "genialidade" de certos
escrevinhadores cabeças-chatas que, à falta de melhor posicionamento
para seus próprios devaneios no ranking da Corte, resolveram criar uma
tolice que apenas endossa aquela célebre reflexão de Fernando Pessoa de
que 90% de toda a produção literária do mundo, tanto a presente (do seu
tempo) quanto aquela ainda por surgir (a nossa), seriam totalmente
descartáveis. Num futuro não muito distante - dizia o Mestre - tudo se
resumirá a uma antologia para cada país: os livros fundamentais, alguns
apontamentos históricos, os autores mais relevantes e nada mais. O velho
filtro natural de que já falei em artigos anteriores e que começa a se
confirmar diante da mediocridade que ora impera no mundo todo,
reforçando também a minha convicção de que a literatura, como arte
maior, universal, não comporta subdivisões em um mesmo país. Ou é boa ou
é ruim e ponto final.
Ora, cada povo é
dono de sua própria literatura, seja essa produzida na Bélgica, no Egito
ou na Guatemala, independente da localização interna. Toda nação, em
qualquer época, contará sempre com os seus autores catalogáveis ou não;
sua poesia, suas características etc, sem que necessite compartimentar a
obra ou o artista de real valor, visto ser essa uma tarefa
exclusivamente do tempo. Não se diz, por exemplo, literatura da
Filadélfia, de Chicago, dissociando-as da americana. Uma literatura
produzida em Nice ou Paris, não deixará de ser francesa; em Berlim ou
Frankfurt, Alemã, e assim por diante. Se falo de minha aldeia, porém o
faço com arte, evidente que o alcance da mensagem será infinito. Os
gregos, por exemplo, ergueram sólidos pilares na Filosofia, servindo
como matriz para diversas outros povos, que, nem por isso, deixariam de
criar suas próprias correntes de pensamentos. Assim como fizeram os
italianos nas epopeias, os ingleses ou espanhóis em suas narrativas
históricas etc. Até os dicionários - para quem ainda tiver alguma dúvida
a esse respeito - referem a Literatura, simplesmente, como "arte de
compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso; a produção
literária dum país ou duma época". O resto é invencionice.
Na concepção
desses pseudos analistas, da Terra do Sol, consagrados autores como José
de Alencar, Domingos Olímpio, Capistrano de Abreu, Clovis Bevilaqua,
Farias Brito, Araripe Júnior, Franklin Távora, Raimundo Magalhães
Júnior, Herman Lima, Rachel de Queiroz ou Gerardo Mello Mourão não
seriam escritores cearenses, dado seus textos terem sido articulados em
outros Estados da Federação, devendo, portanto, serem todos catalogados
como "escribas brasileiros", ou avulsos, sei lá. Por outro lado, e
contraditoriamente, os não menos notáveis Adolfo Caminha, Oliveira
Paiva, Rodolfo Teófilo, Juvenal Galeno, Padre Antonio Tomás, José
Albano, Antonio Sales, Álvaro Martins ou Gustavo Barroso, que igualmente
escreveram obras de largo alcance, em língua portuguesa, a partir de
diversos lugares, inclusive do Ceará, lógico, esses, sim, seriam os
reais representantes da tal literatura cabeça-chata. Ou seja: rotulam a
obra como "literatura cearense" pelo fato de que o signatário produziu
seu trabalho a partir da província ou o fez sobre temas locais - pouco
importando que tais escritos se destinassem ao mundo. Como vemos, uma
tolice monumental, pois tomando por base as considerações de Fernando
Pessoa, será justo imaginarmos que todos os autores acima mencionados
teriam lugar garantido numa antologia brasileira, e não cearense, ainda
que alguns apenas pela importância histórica de suas obras. A esses, eu
acrescentaria apenas os historiadores Antonio Bezerra e Barão de
Studart, o excepcional cronista-sociólogo João Brígido, e mais Jáder de
Carvalho, José Alcides Pinto, Moreira Campos e Francisco Carvalho - o
quarteto que encerra justamente a última de nossas fases mais criativas.
O fenômeno desse
forçado racha na literatura brasileira se deu, quero crer, pelo fato de o
Ceará ter sido, em determinado período de sua rica história, um lugar
com inúmeros vocacionados para as letras, muito embora nem todos
merecessem alinhar ao lado de todos esses que citei neste texto e que
jamais haveriam de ser superados. De uns tempos para cá, aliás, nossa
literatura só tem se repetido como farsa: poetas sofríveis, romancistas
medíocres, contistas lastimáveis e cronistas nulos. Nenhum digno de
referência mais branda. Vaidade exagerada; talento de menos.
Exibicionismo e, algumas vezes, apenas cinismo ou cara de pau. Ou seja:
se não posso fazer parte da Corte, crio um mundo de fantasia onde me
tornarei amigo do rei.
Essa vocação
cearense a que me refiro pode ser constatada na infinidade de
associações, grêmios e academias literárias que começaram a prosperar
em Fortaleza a partir da segunda metade do século XIX, estendendo-se até
o pós-segunda guerra, e que teve seu ponto culminante com a Padaria
Espiritual, comandada por Antonio Sales. Um movimento que seria
relevante para as letras nacionais não apenas por projetar cinco grandes
escritores, mas, sobretudo, por ter lançado luz sobre a necessidade de
renovação em nossas letras, brado que só viria a ocorrer, de modo
oficial, por volta de 1922, em São Paulo. E tudo isso - vejam! - sem
enumerar as centenas de revistas e jornais que surgiam diariamente por
todas as cidades do Estado do Ceará, notadamente na sua capital
Fortaleza, em que cada uma dessas publicações, por mais modesta que
fosse, contava sempre com uma seção dedicada à literatura, conforme
anotaria o Barão de Studart no seu livro "A História do Jornalismo
Cearense", e aí incorporando-se, naturalmente, o Almanaque do Ceará, que
saía todo ano em grosso volume, sendo a metade destinada aos literatos
da terra.
A história da
literatura desenvolvida no Ceará a partir da segunda metade do século
XIX até o presente momento, portanto, é uma só, imutável, constituída
tão-somente por esses autores aqui citados, ainda que alguns brincantes
das letras insistam em querer agregar a ela o próprio nome ou de seus
pares, numa flagrante tentativa de lesarem as gerações forjadas na
mediocridade desse pós-nada em que estamos mergulhados.
Fonte: http://literaturareal.blogspot.com.br/2012/06/representantes-cearenses-na-antologia.html
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