OS PÉS
delianeesilva@hotmail.com
De repente a noite chegara. Ainda parecia cedo.
Saulo, que apesar do nome era um bom cristão, apenas não trocara seu nome como
o apóstolo fizera ao converter-se, levantou-se, foi á janela afastando a
persiana para olhar a rua. De lá entreviu apenas uns pés, - parte de um corpo
em decúbito ventral - que se sobressaiam espremidos entre uma lixeira e o canto
esquerdo da parede da Câmara Municipal daquela cidade interiorana onde vivia
desde que nascera. Ignorou momentaneamente o fato.
Voltou para sua mesa onde haveria de pegar seus
pertences e sair. Seu cérebro despertou. Sim, tinha algo estranho naqueles pés.
Ninguém se deitaria por vontade própria em um lugar como aquele, principalmente
a dona daqueles pés.
O que havia de tão estranho naqueles pés? Além, é claro,
da posição e do local onde se encontravam.
Bizarra sensação penetrou sua alma. Temia a Deus, e
sem querer pensou como a cidade estava ficando cada dia mais violenta. Ao
fechar a porta de sua sala, situada no segundo piso daquele velho prédio de dois
andares, seu pensamento voltou-se para aqueles pés, e num relance percebeu o
que não quis ter percebido antes. Apavorou-se.
Chamaria a polícia! Iria até lá verificar a
inamovibilidade daqueles pés! E se fosse apenas fetiche de alguma prostituta,
conforme vira em uma revista, sobre pessoas que só sentem prazer fazendo sexo
nos lugares mais esquisitos. Se, era isto porque não vira também outros pés?
Era seu hábito permanecer na repartição após o
término do expediente, não comungava com aquela minoria de exploradores do
serviço público que arrumam toda sorte de pretexto para não permanecerem em
seus locais de trabalho. Ele trabalhava. Cumpria seu expediente, às vezes, e
quase que diariamente extrapolava seu horário, portanto, sabia em seu íntimo
que no prédio não se encontrava mais ninguém. Um leve tremor percorreu seu
corpo, possivelmente por força de uma descarga de adrenalina.
Enquanto se encaminhava ao telefone, aqueles pés
não saiam do seu pensamento. Novamente os viu, percebendo nitidamente sua cor,
avaliando mentalmente o seu tamanho e o perfeito estado de conservação dos
sapatos que os calçavam.
Caiu em si, houvera lido naquela tarde, um breve
trecho de uma história contada em certo “beco do crime” acerca de um
criminoso em série que atacava vitimas femininas, e depois de praticar toda
sorte de abusos sexuais com as mesmas, as vestia e as maquiava, cobrindo a
marca do esgorjamento com um xale vermelho, no mesmo tom dos sapatos novos que
calçava nas vítimas.
De relance pensou em sua vida monótona, com toda a
violência urbana nunca presenciara um crime, sabia da existência dos mesmos
apenas pelos jornais. Mas aqueles pés pareciam tão jovens, talvez calçassem
sapatos de numeração 34 ou 35. Lembrou que apesar de tal monotonia na semana
vindoura completaria cinqüenta anos. Na repartição alguns poucos lhe dariam
tapinhas nas costas e votos de parabéns. Nenhum presente. Nada. E a vida
continuaria, rotineiramente.
Pegou o telefone, e o som que ouviu ao tirá-lo do
gancho não era o de discar. Estarreceu-se. Pensou porque não havia casado.
Meditou sobre a tristeza de morrer sozinho caído em algum beco, como a dona
daqueles pés. Enquanto pensava tentava freneticamente estabelecer a ligação com
a polícia. E o som intermitente parecia gritar aos seus ouvidos.... Ocupado!
Ocupado!
Estranhamente pensou em detalhes de como a dona
daqueles pés de sapatos vermelhos novinhos havia sido estuprada, e
envergonhou-se pela excitação que sentia.
Passou a mão nos cabelos, como se com a mão pudesse
afastar aqueles pensamento iníquos, pecaminosos, famintos de sexo e perdição.
Sempre amara calado, e quando fazia sexo emudecia. Suas emoções sempre foram
contidas.
Era insano, sentir uma ereção naquele momento.
Envergonhou-se pensando em sodomia e sexo pecaminoso. Como poderia se excitar
diante da morte. Enlouquecera, o demônio teria vencido. Como? Se sempre fora um
homem bom.
Seus pecados de adolescentes houveram sido
perdoados, pois lhe fora dito que o sexo com ovelhas e cabras, enquanto
as pastoreava, seu único pecado, era resultante da puberdade solitária. Da
insegurança, da explosão dos hormônios.
Na sala, sozinho, murmurou um pensamento,
precisamos ter mais segurança. Assustou-se nunca murmurara uma reclamação,
nunca reclamara, era naturalmente um conciliador, mas não podia mais suportar o
avanço da criminalidade. Insistiu na ligação para a Polícia.
Enfim uma voz
atendeu.
Ao ouvir a voz feminina, um tanto sensual, pensou
na polícia carioca, e como seria a dona daquela voz, e sentiu pena dela, pois
soube que de acordo com o Instituto de Segurança
Pública do Rio de Janeiro, nos últimos 4 anos entre desaparecidos e mortos
foram mais de 24 mil pessoas e que estimava-se uma taxa de elucidação de apenas
5% nos crimes de homicídio.
A voz num misto de pressa e languidez
o despertou de suas divagações, pondo-o em contato com uma voz de homem, que
friamente colheu seus dados pessoais e anotou a informação que atabalhoadamente
prestara sobre os pés caídos em decúbito ventral no beco, que poderia muito bem
passar a se chamar de “beco do crime”. O policial, despedindo-se
rispidamente assegurou que as providências estavam sendo tomadas. Em seguida
ouviu o som do telefone sendo desligado.
Sentado em sua mesa, decidiu esperar.
Enquanto ouvia ao longe o som da
sirene da viatura policial, viu diante de si uma mulher com lábios
calorosamente avermelhados por um batom que o definia com perfeição, encoberta
apenas pelo xale vermelho que lhe escorria do pescoço sensual, mal escondendo
os seios de mamilos intumescidos perfeitamente esculturados acima de um ventre
primoroso.
Avidamente o seu olhar inquieto
buscou a genitália e... estarrecido viu o seu primeiro hermafrodita. A
dualidade. O homem e a mulher em um único ser... às almas gêmeas.
Alguém bateu a porta....
Acordou.
Meio catatônico atendeu a porta e
deparou com o rosto bravo de dois policiais repreendendo-o pelo trote e
informando-lhe que: Quem passa um trote às instituições públicas de
segurança comete crime e ainda pode ser acusado de privar uma vítima de
socorro. O artigo 340 do Código Penal prevê pena de um a seis
meses de prisão ou multa.
Que trote?
Indagou perplexo.
Os policiais responderam.
Os pés com os sapatos vermelhos
novinhos eram apenas pedaços de um manequim da loja em frente, que quebrado,
caíra da lixeira onde houvera sido jogado.
Novembro/2009
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